Saturnália: a origem do “espírito natalino”?

Imagem: Saturnália (1783), de Antoine-François Callet

As festividades de fim de ano evocam um senso de tradição e espiritualidade, mas acredito que poucos se perguntam: quão “originais” são essas celebrações? Para entender o que celebramos hoje, é necessário olhar para o passado.

Na Roma Antiga, entre os dias 17 e 23 de dezembro no calendário juliano, a Saturnália era uma das festividades mais aguardadas. Dedicada a Saturno, deus da agricultura na mitologia romana, essa festividade era realizada para celebrar o que chamavam de “renascimento” do ano, marcando o solstício de inverno no calendário juliano (prevalente no império romano e na Europa durante séculos), que, curiosamente, era celebrado em 25 de dezembro.

Durante a Saturnália, a rigidez das convenções sociais era suspensa. Segundo P. Commelin (1837-1926), em seu livro “Mitologia Grega e Romana”, seu objetivo era sobretudo representar a igualdade que reinava primitivamente entre os homens. Durante sua realização, suspendia-se o poder dos senhores sobre seus escravos, que podiam criticar os defeitos dos primeiros e até jogar contra eles, enquanto eram servidos à mesa. Tribunais e escolas ficavam de férias, o trabalho dos habitantes era interrompido, não era permitido empreender guerra ou executar criminosos, podendo apenas a arte da culinária ser exercida. Trocavam-se presentes e ofereciam-se suntuosos banquetes. Em resumo, o clima de alegria e união se espalhava por toda a sociedade. Nas palavras de P. Commelin: “Tudo então só respirava prazer e alegria”.

Quando o cristianismo começou a se consolidar no Império Romano, muitas dessas práticas foram incorporadas às festividades cristãs. A data simbólica do Natal — 25 de dezembro — não coincide com a narrativa bíblica do nascimento de Jesus, mas com o solstício de inverno e celebrações como a Saturnália e o culto ao Sol Invicto. Essa escolha estratégica facilitou a transição de práticas pagãs para cristãs, transformando tradições culturais em celebrações religiosas.

Apesar disso, muitos celebrantes veem o Natal como uma data exclusivamente cristã, desconsiderando suas influências anteriores. Esse esquecimento revela um fenômeno comum: a ideia de que tradições religiosas são puras e imaculadas. Na realidade, elas refletem séculos de sincretismo, absorvendo elementos de diferentes culturas e crenças para sobreviver e se adaptar a novos contextos. Talvez, ao compreendermos isso, possamos celebrar com ainda mais significado — não apenas a fé, mas a história compartilhada que nos conecta.

Essa reflexão não diminui a importância ou o valor simbólico do Natal, mas evidencia a riqueza de sua história. Afinal, entender as camadas que compõem nossas celebrações pode nos levar a questionar, com mais profundidade, o que realmente celebramos: uma fé imutável ou uma combinação de tradições em constante evolução?

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