Jesus morreu por desafiar o sistema, não por “nossos pecados”

Com a aproximação da Páscoa cristã, ressurge a narrativa do sacrifício de Jesus de Nazaré, conhecido como Jesus Cristo, como redenção pelos pecados da humanidade. Essa é, de fato, uma história poderosa, mas que, sob a lente da análise histórica e sociopolítica, revela outras camadas: Jesus não foi executado por razões espirituais, mas por desafiar a ordem estabelecida – o sistema político, econômico e religioso de sua época.

No século I, a Judeia era uma província do Império Romano, que ali governava em conluio com líderes da elite local. O povo judeu vivia sob ocupação militar, pesados impostos e vigilância constante. Naquela região, desde pelo menos 500 anos antes do nascimento de Jesus, a expectativa por um “Messias” – um libertador ungido por Deus – não era um devaneio espiritual, mas uma esperança política. A promessa messiânica, presente nos textos judaicos (Is 11:1-4; Jr 23:5-6; Dn 7:13-14; Ez 34:23-24, 37:24-28; Mi 5:1-5; etc.), inflamava rebeliões e inspirava líderes carismáticos. Jesus (se existiu) foi apenas um entre vários que se apresentaram como o possível cumprimento dessa profecia. Muitos foram presos, mortos, esquecidos.

O que o destacou entre os demais não foi sua origem divina (essa ideia surgiu mais tarde, com a teologia de Paulo e os evangelhos escritos décadas após sua morte), mas sua habilidade em se conectar com o povo, oferecer uma mensagem simples, provocadora e com forte apelo ético e social. À sua maneira, Jesus foi como um mestre de ofício que inova dentro de um mercado saturado. Como um visionário que enxerga um problema antigo através de uma nova lente, ele ofereceu uma leitura acessível da espiritualidade (Mt 5-7), desmontou dogmas (Mt 23:23-28, Mc 7:6-13) e falou diretamente à dor das massas (Mt 11:28-30, Lc 6:20-21). Enquanto outros candidatos a Messias tentavam soluções militares ou políticas, ele apostou na transformação da sociedade por meio da palavra e de gestos públicos carregados de significado político e espiritual.

Sua linguagem era direta, revolucionária e ética: criticava o acúmulo de riquezas (Mt 6:19-21, 19:21-24, Lc 12:15, 6:24, 16:19-31, Mc 10:23), desafiava a hipocrisia das autoridades religiosas (Mt 23:1-36, Lc 11:37-52, Jo 2:13-16, Mc 7:6-9) e invertia as hierarquias com frases como “os últimos serão os primeiros” (Mt 19:30, 20:16; Lc 13:30) e “os humilhados serão exaltados” (Lc 14:11, Mt 23:11-12, Mc 10:42-45).

Em seu gesto mais emblemático, Jesus invadiu o Templo de Jerusalém – símbolo do poder religioso e econômico judaico – e espalhou as moedas e virou as mesas dos cambistas no Templo de Jerusalém (Mt 21:12-13, Mc 11:15-17, Lc 19:45-46, Jo 2:13-16). Isso foi mais do que um protesto moral: foi uma afronta direta ao sistema que lucrava com a fé do povo. Ao fazer isso durante a Páscoa judaica, o maior evento religioso do ano, diante de uma cidade cheia de peregrinos e sob o olhar atento dos romanos, ele se tornou um problema político.

A resposta foi rápida e violenta. Arquitetada por autoridades romanas (julgamento político: Lc 23:2-5, 13-25) e judaicas (julgamento religioso: Mc 14:53-65, Mt 26:57-68, Lc 22:63-71 e João 18:12-24), sua execução por crucificação – punição reservada a insurgentes e ameaças políticas da época – revela o verdadeiro motivo de sua morte. Não foi o “pecado original” que o levou à cruz, mas a ameaça que representava à estabilidade do poder vigente. Nesse aspecto, sua morte ecoa a de Sócrates (c. 470 a.C. – 399 a.C.), condenado séculos antes por questionar a moral vigente e “corromper” a juventude ateniense. Ambos se tornaram incômodos demais para seus tempos, não por armas, mas por ideias. E, como tantas vezes acontece com aqueles que não se curvam às conveniências impostas, foram silenciados – apenas para mais tarde serem transformados em ícones pelas mesmas culturas que os condenaram à morte.

É irônico que, com o tempo, a morte de Jesus tenha sido reinterpretada como plano divino de salvação, apagando o lado político de sua história. Hoje, muitos o lembram mais como “o ‘Cordeiro de Deus’ sacrificado pelos pecados da humanidade” do que como agente de subversão. No entanto, se olharmos para sua vida considerando os mesmos critérios que admiramos em grandes líderes e pensadores – aqueles que desafiaram as normas estabelecidas, propuseram mudanças significativas e resistiram às forças reacionárias que buscavam manter uma ordem social vigente quase sempre cruel com os mais vulneráveis –, veremos alguém que soube identificar uma necessidade profunda, oferecer uma solução transformadora e pagar o preço por sua coragem. 

Jesus foi, antes de todas as interpretações teológicas e espirituais desenvolvidas sobre ele, alguém que desafiou o sistema social estabelecido e, por isso, foi morto.

Talvez, ao relembrarmos sua história nesta Páscoa, devêssemos menos repetir o discurso da culpa e mais refletir sobre o poder das ideias que incomodam as estruturas de poder que controlam a sociedade – e o preço que se paga por essas ideias.

One thought on “Jesus morreu por desafiar o sistema, não por “nossos pecados”

  1. Bom texto…mas não inclui os milagres de Jesus e a ressurreição… mistérios que o distanciam de ser apenas Revolucionário, como propõe o texto, mas algo que só pode ser explicado pela FÉ……

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