As consequências de um ataque ao campo de refugiados de Jabalia, em Gaza, no início da Guerra Israel-Hamas, em 2023 (Fonte da imagem: BBC News Brasil)
Nós, humanos, somos as memórias que criamos e mantemos. Nada mais que isso. Uma ligação neuronal que se quebra em nosso cérebro é suficiente para deixarmos de ser o que éramos antes do fenômeno. Se você acredita que existe algo como “alma”, as evidências científicas encontradas até hoje indicam que aquilo que entendemos como “eu”, “consciência” ou “identidade” se resume às memórias, que, por sua vez, são fruto das conexões neurais e dos padrões de atividade elétrica e química do nosso cérebro.
Não escolhemos onde nascer e, quando nascemos e chegamos a uma idade em que temos certo grau de compreensão, nos são ensinados diversos costumes a que não temos direito de escolha. Em outras palavras, esses costumes são imputados em nossa mente, tornando-se nossas primeiras memórias. Esses costumes são tradições religiosas, culturais e políticas. A regra de ouro para uma coexistência pacífica é obedecer a esses costumes sem jamais questionar por que existem ou os motivos para obedecê-los. Uma ferramenta crucial para a criação e manutenção de uma sociedade humana coesa e manipulável.
Em seu “Discurso da Servidão Voluntária” (1577), Étienne de La Boétie (1530-1563) afirma que as coisas às quais o homem é treinado e acostumado parecem naturais a ele, moldando seu caráter de forma que ele segue instintivamente as tendências dadas por seu treinamento. Trilhar esse caminho instintivo impede que o homem perceba sua natureza de ser e desejar ser livre. E é justamente por isso que fazê-lo trilhar esse caminho é essencial para aqueles que o treinaram e reforçam seu treinamento de quando em quando, senão constantemente, por meio da educação e de símbolos, rituais, propaganda e inúmeras outras ferramentas. Tudo cuidadosamente destinado a mantê-lo em uma servidão voluntária a eles.
Com as memórias criadas e mantidas por esse treinamento, os treinadores – que, daqui em diante, passarei a chamar de “dominadores” – conseguem manter boa parte de uma sociedade, ou até toda ela, sob seu controle, o que lhes permite utilizá-la a seu bel-prazer: seja para se perpetuar no poder, livres para fazer o que quiserem, sem reprimendas; seja para combater quem ameaça tomar esse poder; seja ainda para impor sua dominação sobre outras sociedades, inclusive de outras nações, que, obviamente, possuem outros costumes, portanto, outras memórias. Aos dominadores nada é mais essencial do que o treinamento que dão. Depois desse treinamento primordial, apenas o treinamento técnico – aquele que permitirá aos subordinados realizar os engenhos, bélicos ou não, de seus dominadores – é essencial. Nenhum outro treinamento se faz necessário.
Um treinamento que ultrapassasse os limites do conhecimento proporcionado pelos outros dois poderia pôr fim à cegueira causada pelo nacionalismo, pelo patriotismo e pelo fanatismo religioso ensinados e reforçados desde cedo pelo treinamento primordial. Um treinamento que ultrapassasse os limites do conhecimento proporcionado pelos outros dois poderia revelar que o “outro”, que aprendemos a ver como inimigo, alguém de quem devemos ter medo, é, na verdade, bem parecido conosco mesmos – humano como nós mesmos. Poderia revelar, ainda, uma verdade incômoda: que todo o treinamento primordial beneficia, exclusivamente, ninguém mais do que os próprios dominadores.
Isso pode parecer algo distante no tempo, no espaço, algo que não cabe no século XXI. Mas não é. Basta se afastar um pouco de nossa confortável ilha, seguindo o conselho de José Saramago (1922-2010) – ou, dito de uma forma contemporânea, que saiamos de nossa aconchegante “bolha” –, e voltar os olhos para ela, agora com nosso senso crítico ligado. Esse fenômeno está em toda parte, em diferentes matizes e graus de intensidade em qualquer sociedade: da família mais pobre à mais rica, da sua família à família de alguém do outro lado do mundo, da padaria da esquina às maiores corporações, da igreja evangélica de uma só porta aos maiores templos religiosos, da escola de um minúsculo povoado às maiores universidades, da prefeitura de uma cidade minúscula ao governo dos maiores países.
No Leste Europeu, a guerra entre Rússia e Ucrânia segue sustentada por narrativas nacionalistas e memórias históricas moldadas para justificar o presente, chegando ao ponto de a Rússia sequestrar crianças ucranianas e doutriná-las para guerras futuras. No Oriente Médio, os intermináveis ciclos de violência entre Israel, Gaza, Irã e seus aliados, onde o inimigo é uma construção tão enraizada, mantida há tantos séculos, que qualquer possibilidade de coexistência parece, muitas vezes, impossível. Na África, conflitos como a Guerra Civil do Sudão, da República Democrática do Congo, da Somália, da região do Sahel e tantos outros, onde etnias, religiões e fronteiras artificiais criadas pelo colonialismo seguem alimentando massacres, deslocamentos forçados e tragédias invisíveis para grande parte do mundo. Dentro do próprio Brasil, o inimigo é fabricado diariamente: nas periferias, onde a população negra é o alvo preferencial; nas florestas, onde povos originários são tratados como “obstáculos ao progresso”; e nas ruas e redes sociais, onde o diferente é visto como ameaça a ser combatida, não como alguém com quem se dialoga.
Memórias nos indicam quem são nossos familiares, nossos amigos e, mais importante, nossos inimigos – aqueles que, em termos de evolução biológica, ameaçam nossa existência e, por consequência, a sobrevivência de nossa descendência. Memórias movem desde pequenos conflitos familiares a guerras mundiais. Memórias definem que objeto pertence a quem, que ínfimo pedaço de terra pertence a quem, que território pertence a quem, que continente pertence a quem. Memórias fazem derramar o sangue inocente de quem é enviado para lutar guerras movidas por líderes egocêntricos que viverão os últimos dias dos confins de sua velhice em um leito macio e quente.
Quando seguimos cegamente o que nos é ensinado no treinamento primordial que nos é dado – treinamento que condena alguém que é humano como nós mesmos, que difere de nós apenas nos costumes e no lugar em que nasceu, ambos frutos do acaso –, corremos o risco de nos condenarmos a nós mesmos. Quando apoiamos alguém que demoniza ou pretende destruir outro ser humano, precisamos criar, contra toda a vontade dos que nos dominam, a memória de que também somos humanos e uma hora ou outra poderemos ser demonizados e destruídos.
Para encerrar, retoco no ponto do inimigo, mencionado duas vezes ao longo deste texto, relembro a conferência “Construir o inimigo”, realizada em 2008 e publicada no livro “Construir o inimigo e outros escritos” (2011), em que Umberto Eco (1932-2016) mostra como definir o “outro” como inimigo ajuda os poderosos a definir quem é o “nós”, um mecanismo talvez tão antigo quanto a própria humanidade. O mais impressionante, a meu ver, é que esses inimigos não precisam ser necessariamente reais, concretos, palpáveis: eles podem ser completamente imaginários, inventados, distorcidos ou exagerados. A simples ideia de um inimigo já é suficiente para gerar coesão interna, fortalecer laços de pertencimento e justificar qualquer tipo de violência, repressão ou opressão.
A questão imaginária me impressiona por causa da contínua exploração da fragilidade humana em se apegar a superstições, que, ainda hoje, seguem vivas, apesar de todo o avanço da ciência, do conhecimento e da tecnologia que a humanidade foi capaz de desenvolver. E é exatamente disso que os dominadores precisam. O treinamento primordial utilizado por eles há tantos milênios jamais perdeu completamente sua eficácia frente a qualquer avanço do conhecimento humano.
Observando o padrão que a História nos mostra, me parece que, por mais que eu e tantas outras pessoas – muito mais capacitadas do que eu – lutemos pela promoção do pensamento crítico, talvez a única ferramenta capaz de ajudar a humanidade a se proteger de tais dominadores, não importa quanto tempo passe, nós, humanos, seguiremos sendo, talvez para sempre, reféns das memórias que nós mesmos criamos.